Em um movimento que traz esperança e liquidez a um ativo por muito tempo esquecido, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) tem consolidado, por meio de uma série de decisões proferidas ao longo de 2024 e no primeiro semestre de 2025, o entendimento de que as antigas ações do Banco do Estado de Santa Catarina (BESC) e de sua subsidiária BESCRI são instrumentos válidos e idôneos para a garantia de execuções fiscais. A notícia, que reverbera nos corredores de escritórios de advocacia e contabilidade, reacendeu o interesse por esses papéis, criando um mercado aquecido e especializado, e oferecendo uma solução estratégica para empresas com passivos tributários.
Para milhares de catarinenses – herdeiros e acionistas originais que guardam as cautelas (os certificados físicos das ações) como uma relíquia familiar – esta tendência jurídica representa a transformação de um papel amarelado pelo tempo em um ativo financeiro com valor real. A aceitação judicial permite que devedores de tributos substituam a penhora de bens de alta liquidez, como imóveis, veículos e dinheiro em conta, pelas ações do antigo banco, preservando assim seu patrimônio e capital de giro. Esta dinâmica impulsionou a procura e, consequentemente, a valorização dos lotes de ações que ainda se encontram em posse da população.
A Tese Jurídica: O Sucessor Universal e o Princípio da Menor Onerosidade
O pilar que sustenta a validade jurídica desses papéis reside em dois conceitos fundamentais: a sucessão universal e o princípio da menor onerosidade ao devedor. Quando o Banco do Brasil (BB) incorporou o BESC em 30 de setembro de 2008, ele se tornou seu sucessor universal, o que significa que assumiu todos os seus ativos e, crucialmente, todos os seus passivos. As ações, por sua natureza, representam uma fração do capital social da empresa e, portanto, uma obrigação da companhia para com seus acionistas.
Com a incorporação, essa obrigação foi transferida integralmente para o Banco do Brasil. As ações do BESC passaram a ter seu valor e liquidez garantidos por uma das maiores e mais sólidas instituições financeiras da América Latina.
É com base nessa premissa que os advogados têm obtido êxito nos tribunais. A Fazenda Pública, seja ela municipal, estadual ou federal, frequentemente recusa a nomeação das ações à penhora, alegando baixa liquidez. Contudo, o TJSC tem rebatido essa alegação de forma consistente. A jurisprudência catarinense aponta que a recusa é injustificada, pois a garantia do Banco do Brasil confere aos títulos a liquidez necessária.
Adicionalmente, os magistrados têm aplicado o Artigo 805 do Código de Processo Civil, que consagra o princípio da menor onerosidade. O artigo estabelece que, “quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado”.
“A lógica é cristalina. Se o devedor possui um bem, no caso as ações, cujo valor é suficiente para cobrir a dívida e é garantido por uma instituição de primeira linha como o Banco do Brasil, não há razão para o Estado exigir a penhora de um imóvel produtivo ou do caixa da empresa, o que poderia levar a dificuldades operacionais ou até mesmo à falência”, explica a Dra. Carolina Bastos, advogada tributarista com atuação em Itajaí e que recentemente obteve sucesso em um caso para uma empresa de logística. “O Estado não pode escolher o bem que mais lhe agrada em detrimento da saúde financeira do contribuinte. O objetivo da execução é satisfazer o crédito, e as ações do BESC, devidamente avaliadas, cumprem perfeitamente essa função”, conclui.
O Laudo de Avaliação: A Chave que Abre as Portas do Judiciário
Um ponto é unanimidade entre os especialistas: a simples apresentação das cautelas no processo não é suficiente. O sucesso da operação depende da juntada de um laudo de avaliação pericial contábil, detalhado e robusto. Este documento técnico é o que transforma o potencial do papel em um valor monetário concreto e defensável.
O laudo realiza uma complexa engenharia financeira para determinar o valor presente das ações. O processo de cálculo geralmente envolve:
- Identificação do Fator de Troca: O perito resgata o fator de conversão estabelecido no Protocolo e Justificação de Incorporação do BESC pelo Banco do Brasil em 2008. Esse fator determinava quantas ações do Banco do Brasil (BBAS3) um acionista do BESC teria direito por cada ação que possuía.
- Cálculo de Dividendos e Juros Sobre Capital Próprio: O laudo projeta todos os proventos (dividendos, juros sobre capital próprio, bonificações) que as ações do Banco do Brasil correspondentes teriam pago desde a data da incorporação até a data atual. Isso é fundamental, pois representa uma parte significativa do valor total.
- Correção Monetária: Sobre todo o montante apurado (valor das ações convertidas + proventos), aplica-se um índice de correção monetária, como o IPCA ou o INPC, para preservar o poder de compra do valor ao longo do tempo.
O resultado é um montante final que, em muitos casos, surpreende os detentores dos papéis. Um pequeno lote de ações comprado por um valor simbólico nos anos 80 ou 90 pode, hoje, representar dezenas ou até centenas de milhares de reais.
A Longa Jornada dos Papéis do “Nosso Banco”
Para compreender o apego e a vasta distribuição dessas ações, é preciso mergulhar na história de Santa Catarina. Fundado em 1962, o BESC era carinhosamente chamado de “Nosso Banco”. Ele financiou a expansão da indústria metal-mecânica no norte do estado, a indústria cerâmica no sul, o agronegócio no oeste e o turismo no litoral. Ser acionista do BESC era um ato de civismo e um investimento no próprio futuro de Santa Catarina.
A notícia da sua incorporação pelo Banco do Brasil foi recebida com sentimentos mistos. Se por um lado representava um alinhamento com as políticas do governo federal e uma suposta modernização, por outro, significava o fim de uma era de autonomia financeira para o estado.
O processo de conversão das ações, embora tecnicamente bem definido, falhou em alcançar a todos. Em uma época pré-digital para muitos, com comunicação baseada em correspondências e editais em jornais, a informação não chegou a todos os rincões do estado. Acionistas idosos, famílias que se mudaram ou herdeiros de titulares já falecidos simplesmente ficaram à margem do processo.
“Meu avô era agricultor em Videira e comprou um lote de ações do BESCRI nos anos 90. Foi o investimento da vida dele”, conta Ricardo Pires, engenheiro que vive em Joinville. “Ele faleceu em 2011, e minha avó guardou os papéis numa pasta junto com a escritura do terreno. Para ela, o banco tinha ‘acabado’ e o dinheiro estava perdido. Foi apenas no ano passado, ao ouvir uma reportagem no rádio sobre o assunto, que decidimos investigar. Contratamos uma assessoria e descobrimos que o lote valia mais de R$ 120.000,00. Foi um choque para toda a família”, relata.
O Ecossistema da Compra e Venda: Como Transformar Papel em Dinheiro
A demanda criada pelas empresas devedoras e a oferta pulverizada na mão de milhares de herdeiros deram origem a um nicho de mercado dinâmico. Empresas de consultoria especializadas, como o portal Ações do BESC, surgiram para profissionalizar a conexão entre as duas pontas, oferecendo segurança e expertise.
O processo de venda de um lote de ações normalmente segue um rito bem definido:
- Avaliação Inicial: O proprietário das ações entra em contato com a consultoria, que realiza uma análise preliminar para checar a titularidade e a aparente autenticidade dos documentos.
- Perícia de Autenticidade: Um perito grafotécnico examina as cautelas para atestar que não são falsificações. Este laudo de autenticidade é a primeira garantia da transação.
- Elaboração do Laudo Financeiro: A consultoria contrata um economista ou contador para elaborar o laudo de avaliação monetária, conforme detalhado anteriormente. Este é o documento que estabelece o valor de face do ativo.
- A Proposta de Compra e o Deságio: Com o valor do laudo em mãos, a consultoria apresenta o lote a investidores ou empresas interessadas. A oferta de compra é feita com um “deságio” sobre o valor total do laudo. Este deságio, que pode variar de 20% a 50%, representa duas coisas: a remuneração do comprador pelo risco e pelo tempo que o capital ficará imobilizado no processo judicial, e a liquidez imediata para o vendedor.
- Formalização: Aceita a proposta, a venda é formalizada através de um Contrato de Cessão de Direitos Creditórios, onde o vendedor transfere todos os direitos sobre as ações para o comprador. Geralmente, é assinada também uma Procuração Pública em cartório, dando ao comprador plenos poderes para representar o titular das ações perante a justiça e o Banco do Brasil.
Para o herdeiro que precisa do dinheiro rapidamente ou não quer arcar com os custos e a incerteza de um processo judicial, a venda com deságio é uma excelente opção. Para a empresa que compra, a operação é igualmente vantajosa, pois ela adquire um crédito por um valor inferior ao seu valor de face, utilizando 100% do valor do laudo para garantir sua dívida fiscal, gerando uma economia tributária indireta.
O futuro para os detentores das ações remanescentes do BESC e da BESCRI parece, portanto, mais promissor do que nunca. A consolidação da jurisprudência em Santa Catarina funciona como um farol, iluminando o caminho para que um patrimônio que parecia perdido possa ser recuperado e utilizado de forma inteligente. A história do “Nosso Banco” ganha, assim, um novo capítulo, não mais nas agências bancárias, mas nas salas de audiência e nas mesas de negociação, provando que o verdadeiro valor de um ativo pode, por vezes, permanecer adormecido, apenas esperando o momento certo para despertar.